domingo, 28 de fevereiro de 2010

AS ORDENS ANGLICANAS


IX. (A questão da forma e matéria próprias da ordenação)...
O batismo é o único dentre os sacramentos no qual há completa certeza quanto à forma e matéria. E isto concorda com a natureza do caso. O batismo é a porta da Igreja para todos os homens e, em necessidade urgente, pode ser administrado por qualquer cristão; por isto as condições do batismo válido deviam ser conhecidas de todos. Quanto à eucaristia, ela oferece suficiente certeza quanto à matéria (deixando-se de lado, como de menor importância, as questões concernentes ao pão não fermentado, sal, água e semelhantes); mas o debate ainda continua quanto à sua forma de plena e essencial. Não existe, igualmente, inteira certeza quanto à matéria da confirmação; e de nossa parte estamos longe de pensar que cristãos que sustentam opiniões diferentes sobre esse assunto devem se condenar mutuamente. Por outro lado, a forma da confirmação é incerta e totalmente geral, a saber, oração, bênção, mais ou menos apropriadas, tal como costumeiramente foram empregadas em diferentes igrejas. Sobre outros sacramentos há incertezas semelhantes.

X. ...O papa escreve que a imposição das mãos é a matéria que é “igualmente empregada para a confirmação”... Mas a Igreja Romana, durante diversos séculos, usou, por um costume corrupto, a extensão das mãos sobre uma multidão ou simplesmente “na direção daqueles que devem ser confirmados”, em vez de conferir a imposição das mãos sobre cada pessoa[1]. Os orientais (com Eugênio IV) ensinam que a matéria é o crisma e não usam imposição das mãos neste rito. Se portanto a doutrina acerca de uma matéria fixa e de uma forma estável deve ser admitida, então os romanos conferiram a confirmação de maneira menos que perfeita durante muitos séculos, enquanto que os gregos não possuem qualquer confirmação. Muitos dentre os romanos admitem na prática que uma corrupção foi introduzida por seus predecessores, visto que em muitos lugares, como descobrimos, a imposição das mãos foi unida à unção e em alguns pontificais foi acrescentada uma rubrica para este fim. Podemos então perguntar se os orientais que se convertem aos romanos necessitam de uma segunda confirmação? Ou admitem os romanos que, mudando a matéria, os orientais exerceram o mesmo direito que os romanos ao corrompê-la? Qualquer que seja a resposta do papa, é suficientemente claro que não podemos em todos os pontos insistir muito rigidamente na doutrina da forma e da matéria prescrita, pois neste caso os sacramentos da Igreja, exceto o batismo, poderiam ser postos em dúvida.

XI. (O papa infere na decisão de Trento que a principal função do sacerdote é oferecer o Sacrifício eucarístico)...
Respondemos que cuidamos com a maior reverência da consagração da santa eucaristia, a confiamo-la somente a sacerdotes devidamente ordenados a nenhum outro ministro da Igreja. Nós também ensinamos realmente o sacrifício da eucaristia e não cremos que ela seja “uma simples comemoração do sacrifício da cruz” – crença que parece nos ser imputada numa citação do concílio. Contudo, pensamos ser suficiente, na liturgia que usamos para celebrar a santa eucaristia, que elevemos nossos corações ao Senhor e então consagremos diretamente os elementos já oferecidos a fim de que eles se tornem para nós o corpo e o sangue de nosso Senhor Jesus Cristo – a fim de significar desta maneira o sacrifício que é feito neste ponto. Observamos que ela é uma perpétua memória da preciosa morte de Cristo e a propiciação pelos nossos pecados, segundo a sua instrução, até sua segunda vinda. Pois, em primeiro lugar, oferecemos um “sacrifício de louvor e ação de graças” e, então, apresentamos e reproduzimos perante o Pai o sacrifício da cruz e, através deste sacrifício, “obtemos remissão de pecados e todos os outros benefícios” da paixão do Senhor por “toda a Igreja”; finalmente, oferecemos o sacrifício de nós mesmos ao Criador de todas as coisas, sacrifício que já significamos pela oblação de suas criaturas. Toda essa ação, em que o povo necessariamente deve tomar sua parte juntamente com o sacerdote, estamos acostumados a chamar “sacrifício eucarístico”... (a linguagem do cânon romano é semelhante: “sacrifício de louvor”, uma oferta feita pelos servos de Deus “a fim de tornar-se para nós o corpo e o sangue”, uma oferta de “seus próprios dons e benefícios” (depois da consagração) e então o sacrifício é comparado com o de Abel, de Abraão e de Melquisedeque, para ser “carregado pelos anjos ao altar no alto”.)...
Fica assim claro que a lei da crença, tal como foi estabelecida pelo Concílio de Trento, foi de algum modo além da lei da oração. Trata-se certamente de uma coisa cheia de mistério, um assunto muito adaptado para impedir as mentes dos homens a altas e profundas meditações por fortes sentimentos de amor e devoção. Mas, como deve ser ela com extrema reverência e ser encarada como vínculo da caridade cristã e não como uma ocasião de sutis disputas, definições precisas sobre a maneira do sacrifício e sobre o princípio de como o sacrifício do eterno Sacerdote deve ser relacionado como o sacrifício da Igreja (que, de algum modo, é verdadeiro sacrifício), tais coisas devem, em nosso julgamento, ser antes evitadas do que encorajadas.

XII. Qual é portanto, a razão para impugnar a nossa forma e intenção na ordenação de presbíteros e bispos?
O papa descreve (omitindo coisas de menor importância): “A ordem do presbiterato, sua graça e poder, que é especialmente o poder de consagrar e oferecer o verdadeiro corpo e sangue do Senhor naquele sacrifício que não é uma simples comemoração do sacrifício feito na cruz, devem ser expressos na ordenação de um presbítero.” Com respeito à forma para a consagração de um bispo, não é inteiramente claro o que ele entende; mas parece que, em sua opinião, o “sumo sacerdócio” deve de algum modo ser atribuído ao bispo. Contudo, ambas essas asserções são estranhas, visto que, no mais antigo formulário romano, em uso ao que parece no início do século III, a mesma fórmula é empregada tanto para o bispo como para o presbítero, exceto quanto aos nomes, nada sendo dito acerca do “sacerdócio” e do “sumo sacerdócio”, e nada a respeito do sacrifício do corpo e do sangue de Cristo. Só se faz menção de “orações e oblações que ele oferecerá (a Deus) dia e noite” e se fala de passagem do poder de perdoar os pecados.

(XIII-XVIII. Os elementos agora exigidos pelos romanos na ordenação como essenciais são demonstrados como acréscimos medievais.)

XIX. ... Os romanos, começando com uma simplicidade quase evangélica, enfeitaram a austeridade de seus ritos com ornamentos galicanos e, no decurso de tempo, ajuntaram cerimônias trazidas do Antigo Testamento, a fim de dar sempre maior ênfase na distinção entre povo e sacerdotes. Estamos longe de afirmar que tais cerimônias são “desprezíveis e perigosas” ou que sejam sem valor em seu próprio tempo e lugar. Só declaramos que não são essenciais. Assim, no século dezesseis, quando nossos pais esboçaram uma liturgia para o uso tanto do povo como do clero, quase retornaram aos começos romanos, pois os santos padres – que são tanto deles como nossos (a quem eles chamam de inovadores) – seguiram todos os mesmos chefes dignos de confiança, o Senhor e os apóstolos. Mas agora o único modelo exibido para a nossa imitação é o exemplo da moderna Igreja de Roma, a qual estás inteiramente preocupada com o oferecimento do sacrifício...(No Pontifical Romano, depois da imposição (ou “extensão”) das mãos, o bispo diz uma oração, chamada nos tempos antigos “consagração”). Se as antigas ordenações são válidas, a ordenação dos presbíteros está completa nesse igreja, mesmo hoje, logo que essa oração for proferida, pois se determinada forma uma vez foi suficiente para qualquer sacramento da Igreja, e permanece completa e inalterada, supõe-se que permanece com a mesma intenção, e não se pode afirmar, sem uma espécie de sacrilégio, que perdeu sua eficácia porque outras coisas foram depois acrescentadas tacitamente... (Às alegações sobre a inadequacidade de nosso rito) respondemos que nos firmamos nas Sagradas Escrituras e, na ordenação de um sacerdote, justamente insistimos proclamamos a dispensação e administração da palavra e dos sacramentos, o poder de perdoar e reter pecados e as outras funções do dever pastoral e a esses somamos e incluímos todas as outras funções.

XX. Se o papa, por novo decreto, declarar que nossos pais foram ordenados invalidamente há duzentos e cinqüenta anos, nada impedirá a inevitável decisão de que, pela mesma lei, todos os que foram ordenados de maneira semelhante receberam ordens que são nulas. E se nossos pais que, em 1550 e 1552, usaram formas que, como ele diz, eram nulas, então eles eram totalmente incapazes de reformá-las em 1662; neste caso, os próprios antecessores estão sujeitos à mesma lei. E, se Hipólito, Gelásio e Gregório disseram em seus ritos muito pouco acerca do sacerdócio e do sumo sacerdócio e nada sobre o poder de oferecer o sacrifício do corpo e do sangue de Cristo, então a Igreja de Roma também possui um sacerdócio nulo e os reformadores de seus sacramentários, qualquer que tenha sido sua autoridade, nada podiam fazer a respeito da correção dos ritos. “Porque como a hierarquia (nas próprias palavras do papa) se extinguira devido à nulidade da forma, já não havia poder de ordenar”. E, se o Ordinal “era totalmente incapaz de produzir a ordenação”, é impossível que tenha adquirido esse poder no decurso dos séculos, pois ficou exatamente como estava. E vãos foram os esforços daqueles que (a partir do século sexto) tentaram introduzir alguns elementos de sacrifício e de sacerdócio (e sobre a remissão e a retenção dos pecados) pelo fato de fazer algumas adições ao Ordinal.
Assim, derrubando as nossas ordens, ele, ao mesmo tempo, derruba todas as suas próprias e pronuncia uma sentença contra a sua própria Igreja.


Fonte: BETTENSON, Henry. Documento da igreja cristã. Quarta edição. Tradução de Helmuth Alfredo Simon. São Paulo, ASTE, 2001. p.420-425.
[1] O Sacramento Gelasiano tem uma rubrica: ele impõe suas mãos sobre eles; o Sacramento Gregoriano: levantando suas mãos sobre a cabeça de todos; edições modernas da Pontifical: estendendo suas mãos em direção daqueles que serão confirmados.

Extraído de: http://missaoanglicanabetesda.blogspot.com/2010/02/as-ordens-anglicanas.html